ILUMINADOS E INATINGÍVEIS
ILUMINADOS & INATINGÍVEIS Uma coisa bem comum em meus atendimentos é constatar o hábito recorrente de se colocar certas pessoas (conhecidas ou não, vivas ou mortas) numa espécie de pedestal: são vistas como iluminadas, inatingíveis, inalcançáveis, impertubavelmente felizes, como se estivessem num plano muito distante da Terra. É óbvio que certas pessoas são referência nítida, com dotes e feitos espetaculares; que trazem ânimo, esperança e contribuem (ou contribuíram) largamente para a felicidade alheia... O problema, no entanto, é que esse tipo de postura tende a colocar-nos a milhas de distância de nossa própria autorrealização. Isso é tão triste quanto provém de uma falsa crença que nos é empurrada “goela abaixo” desde que nascemos: “somos seres imperfeitos”, “somos insuficientes em nós mesmos”, e assim “precisamos conquistar virtudes/atributos” para “nos tornar alguém” – o que pressupõe, logo de partida, que “não somos ninguém”. Isso atrapalha nossa compreensão de que, na verdade, as qualidades JÁ ESTÃO em nós, são intrínsecas à nossa natureza. Claro, estamos aqui para aprender, evoluir. Entretanto, o sentido dessa evolução não é o de incorporar o que nos é externo, mas sim o de DESCORTINAR e LIBERTAR a perfeição que já possuímos: nossa unicidade, nossos dons, nosso fluir íntimo e amplo, sempre ali, à espreita, torcendo para que o escutemos, para que o deixemos mostrar o caminho; tarefa essa que não deveria ser tão automaticamente concedida a líderes, mestres, especialistas e gurus (não que o problema esteja neles: têm sua função, como todo mundo). O que está mais ao fundo desta forma desastrosa de pensar é o consenso de que a torpeza (imperfeição) está em nossa natureza animal; que esta é assim, eivada de vícios e responsável pelas falhas do mundo, pelos desvios do homem. “Fazer o quê? É a natureza humana...”, dizem tantos por aí, a fim de conformarem-se com a negatividade. Enquanto isso, outros partem em busca do caminho virtuoso, sendo a virtude tida, então, como o esforço para se calar a natureza animal. E é bem aí que damos o tiro no pé... Custamos a perceber que não há nada de errado com a nossa animalidade. Ela é componente legítima do mosaico universal. Há em nosso corpo uma inteligência própria, indiscutível, tão válida quanto, e até mais antiga e abrangente, que a mental (afinal, a mente é parte do corpo). A falsa crença de que o problema está em nossa natureza animal (ou na natureza humana) permite que continuemos incessantemente a perder o verdadeiro foco da questão: o EGO! Com suas inúmeras armadilhas, sua sede de controle, suas auto-imagens e anseios intermináveis, é ele quem afunda o barco. . Os maus olhos com que vemos nossa própria animalidade resultam na repressão dessa inteligência corporal, que, por sua vez, gera o sufocamento de nosso “radar interno”, nossa verdade interior frente aos fatos e experiências da vida... É justamente o ego quem se fortalece nessa falsa perspectiva, e faz com que, assustadoramente, incontáveis personalidades se prendam e se comprometam com a (auto)imagem da pessoa “virtuosa”, “sacrificada”, “esforçada”, “modesta”, “exemplar”, “irrepreensível”, “superior” ou “heroica”, obtendo adeptos e discípulos mundo afora, ou influência em seus círculos, em detrimento de uma postura humana, desafetada e genuína; em detrimento de sua criatividade inata, sua espontaneidade; do reconhecimento de sua fragilidade, sua sombra, suas loucuras, seus devaneios, seu brilho único; em suma, em detrimento da expressão sincera de sua singularidade – precioso sentido da existência. O segundo problema em crer-se distante de pessoas aparentemente felizes e realizadas é que nisto mora o esquecimento de que todo ser humano enfrenta desafios. É pensar que a plenitude seja um “estágio final”, e não o fruto de uma conscientização contínua. É ver a plenitude, nesta terra, como um êxtase permanente, alheio a turbulências, isto é, um estado em que nada nos desagrada, entristece ou atrapalha. Pode ser difícil para alguns pensar que, uma vez que nos tornamos “faixas-pretas da vida”, ainda existam desafios. Basta lembrar, porém, que a vida é cíclica, flutuante, impermanente. Embora a conscientização não retroceda, e possamos adquirir gradativamente mais sabedoria no andar da carruagem, não há qualquer forma, pessoa ou situação que perdure; e portanto não pode haver, do mesmo modo, estado de espírito que se mantenha intacto. O que acontece é que, talvez, esses “faixas pretas”, ou “mestres” da vida, tenham chegado a um livramento tamanho de suas ilusões neste planeta, que vivem seus desafios com menos tensão, maior compreensão e paz interior. E por quê? Eu apostaria que chegaram a uma aplicação e um entendimento mais amplo, mais coerente, sobre o amor e as leis do universo, e a união de tudo o que o compõe. Sobretudo, aceitaram essas leis e as absorveram com naturalidade. Livraram-se do apego às polaridades e da inaderência a toda e qualquer experiência de suas existências. Certamente escaparam, também, da falsa crença sobre seres inatingíveis, a culpa do ser animal e o esforço pela conquista de virtudes. Antes de mais nada, talvez tenham entendido serem eles mesmos, em última instância, seus próprios Mestres. Não procuraram ir mais ao alto: procuraram ir mais ADENTRO.
Sérgio Lant-Tiger
Consultor & Psicoterapeuta Taoísta
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