EM DEFESA DA LIVRE IMPARCIALIDADE
Há poucos dias em um grupo de whatsapp houve uma postagem de um texto cujo título era O PACIFISMO INGÊNUO, de Carlos Cardoso Aveline. Achei o trecho muito interessante, porém dotado de uma miopia perigosa.
Ele toca em um ponto bem interessante e questionador sobre atitudes imparciais/isentas diante da condição dual da vida e do ser humano, e portanto cruza visceralmente a seara taoista (entre outras), cujo fundamento básico é o reconhecimento e auto-alinhamento aos movimentos cósmicos yin e yang, a toda a dualidade da vida, e, ao mesmo tempo, a busca pela transcendência dessa dualidade (tai jí, infinito universal: yin e yang vividos em UNIDADE). Por adentrar uma questão sensível ao taoismo, por ela ser tão polêmica atualmente e também porque, com a ocasião, encontrei uma boa inspiração para retomar os textos neste blog, me dispus a comentá-lo.
O texto segue abaixo. Teci meus comentários na sequência...
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O PACIFISMO INGÊNUO
Quando examinamos algumas das ilusões “espirituais” comuns na primeira parte do século 21, há um item que merece um relativo destaque. Trata-se do mito pacifista segundo o qual todo conflito é inútil, e a única atitude recomendável é a ausência de combate, e até a ausência de esforço, por parte do aprendiz espiritual.
A obra “Três Caminhos Para a Paz Interior” descreve essa atitude como uma negação infantil do conflito:
“O pacifista ingênuo faz de conta que todo conflito é inútil ou ilusório, e com isso evita tomar uma posição clara. Nega seus próprios sentimentos de rancor, que passam a fazer parte da sua ‘sombra’ inconsciente. Pensa, por exemplo, que ‘nazismo e democracia são a mesma coisa’, e que a injustiça social ou a corrupção na política não devem ser combatidas ‘porque, afinal, fazem parte do mundo externo ilusório’. Ele prefere não perceber que há no mundo externo um doloroso conflito entre verdade e ilusão, sinceridade e mentira; que esse conflito externo é influenciado e também influencia o que ocorre na alma humana, pois é, na verdade, parte dela.”
Fechando os olhos para a realidade externa, o pacifista superficial desiste de usar o discernimento. Pensa que o caminho espiritual consiste em nunca dizer uma palavra áspera e manter sempre um sorriso nos lábios. Ele repete os escribas e fariseus criticados por Jesus – que eram como sepulcros caiados, limpos por fora, mas cheios de substâncias podres por dentro, segundo Mateus, 23.
O pacifista superficial trata de imitar da melhor maneira possível o suposto comportamento externo e o olhar sublime dos santos, tal como aparecem nos retratos das igrejas. Esse enfoque evita comodamente proteger a verdade contra a mentira ou a justiça contra a opressão, alegando que “a iluminação espiritual transcende as ilusões dualistas”.
(Carlos Cardoso Aveline)
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Gosto muito quando vejo pessoas desmistificando a noção de que ser espiritualizado é necessariamente evitar o conflito, ser “bonzinho”, permissivo, manso, nunca falar palavrão, não dar vazão à sua própria condição humana e animal, à própria manifestação de sua verdade interior e de seus instintos, de sua própria agressividade, assertividade ou severidade quando necessário. Essa é uma caricatura realmente improdutiva e que certamente atrasa o caminho de muitos. E o incrível é que poucas pessoas no meio espiritualista/holístico realmente tocam nesse assunto.
Nesse sentido é que achei muito feliz a colocação de que é ingênuo e inapropriado um pacifista ou uma pessoa que busca um caminho espiritual acreditar ser “inútil” ou “ilusório” todo e qualquer conflito, achando ser seu dever apenas contemplar e assistir com distância, sem se envolver. Gandhi, por exemplo, era um pacifista, mas não deixava de adotar uma postura ativa, não fugia do conflito.
Entretanto, embora não fugisse do conflito, Gandhi também não o promovia: ele transcendia, sim, a dualização. Apesar de se posicionar politicamente, não se aferrava às polaridades, não via os ingleses como inimigos, nem acusava, perseguia ou intimidava os que não aderiam à sua causa política.
Fato é que, quando uma pessoa se coloca à altura de julgar quem se abstém de escolher um lado "da balança", é sinal de que seu discernimento foi afetado. Faltou ao autor frisar -- se é que ele assim faria -- que todos possuem o direito de se abster de escolher um “polo”, tanto quanto o direito de escolhê-lo... Todos têm o direito de participar parcialmente, tanto quanto o direito de participar imparcialmente. É simples assim.
A realidade é muito mais subjetiva do que objetiva, e isso é algo comprovado pela própria ciência: a mente reage de acordo com sua própria forma de ver o mundo e as crenças que abriga, separando a ala de quem pode ser rotulado de “amigo” (“nós”, os “corretos”) da ala dos “inimigos” (“eles”, os “incorretos”), o "certo" do "errado". Porém, “no frigir dos ovos” a verdade suprema não pertence a ninguém. Ensina-nos o Taoismo que, quanto mais nos apegamos aos polos, menos nos aproximamos dessa verdade, ou melhor, do Tao (o "Caminho do Cosmos", o "fluxo" do universo...).
No trecho apontado, o autor acaba se referindo de forma pejorativa a tal postura, ou pelo menos dá margem a tal entendimento negativo, com esta frase: “esse enfoque evita comodamente proteger a verdade contra a mentira ou a justiça contra a opressão, alegando que a iluminação espiritual transcende as ilusões dualistas”, ou também com a frase: "Ele prefere não perceber que há no mundo externo um doloroso conflito entre verdade e ilusão, sinceridade e mentira...". A simples lacuna de não deixar claro que não se posicionar e não adotar um polo são coisas diferentes já deixa pairar um desmerecimento dos imparciais. E isso abre alas para um autoritarismo disfarçado.
Tenho visto esse discurso "anti-imparcial" se repetir bastante por aí, e costumo ignorá-lo... Contudo, com tanta polarização ideológica fervilhando por aí, percebo ser importantíssimo marcar que, assim como, de um lado, muitos usam o discurso "imparcial espiritualizado” para a falta de atitude, de outro, muitos usam o discurso contrário para acender a chama dos conflitos e tentarem intransigentemente arrastar os outros para suas próprias bandeiras, relegando muitas vezes uma postura de fato espiritualista ao plano da banalidade, da covardia, ou, como quer o autor do trecho acima, da “ingenuidade”.
Tão importante quanto vigiar o perigo da passividade sob a desculpa da “falsa transcendência”, é vigiar o discurso IMPOSITIVO do posicionamento parcial, bem como a postura intolerante a opiniões contrárias ou isentas. É o que temos tristemente testemunhado no cenário brasileiro ultimamente, sobretudo desde 2018.
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Além do mais, “quem é quem” para julgar se o outro está agindo de acordo com sua verdade íntima ou de acordo com ilusões? “Quem é quem” para dizer “eu estou do lado certo e você do lado errado”? Quem pode arvorar-se em grande juiz da "verdade" e da "ilusão", da "sinceridade" e da "mentira", como sugere o autor, a ponto de tachar de "ingênuo" quem se coloca equidistante?
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Alguns dizem que é muito fácil ancorar-se em belas teorias espiritualistas e manter um cômodo distanciamento, o que não deixa de ser verdade: se houver comodidade nesse distanciamento, é mau sinal. Pode haver paz, enquanto fruto do distanciamento, mas dificilmente haverá comodidade, se a postura isenta for sincera: será constantemente desafiador sustentar tal postura. A vida é desafiadora em si mesma, e é justamente isso o que nos permite evoluir em nossa senda espiritualista.
Mais além, o importante não é se as teorias são belas. O importante é se elas são profundas, se são verdadeiras. Aliás, é daí que vem sua beleza. E elas têm o alcance de serem mais revolucionárias do que qualquer partidarismo, se vivenciadas com coragem, porque focam no fato de que a revolução é sobretudo interior; o exterior é consequência, emana da fonte. Afinal é disso tudo que falavam Jesus, Lao Tse, Buda e tantos outros... É disso que fala igualmente a física quântica.
A maior ingenuidade que existe, por fim, é a de não seguir sua verdade interior. Felizmente, para isso não há termômetro personificado, não há juiz, nem selo de validade.
SÉRGIO LANT-TIGER
Consultor de I Ching & Psicomentor Taoísta